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O Superendividamento e suas consequências sociais
Entrou em vigor, em 2 de julho de 2021, a lei 14.181/2021, que alterou alguns artigos da lei 8.078/90, conhecida como Código de Defesa do Consumidor, tendo essa nova legislação, buscado aperfeiçoar a disciplina do crédito, bem como trabalhar a prevenção e o tratamento do superendividamento perante a sociedade de consumo. Essa visão do instituto é notória já da leitura do inciso IX e X acrescido ao artigo 4º, quando diz que cabe à Política Nacional das Relações de Consumo fomentar ações direcionadas à educação financeira dos consumidores, prevenindo e tratando o superendividamento de forma a evitar a exclusão social do consumidor.
Historicamente, tem-se que esse fenômeno social, é fator gerador de tensões no meio familiar, que culminam com rompimento de vínculos matrimoniais – que acabam por agravar ainda mais uma situação que já se encontra ruim, isso porque, um problema acaba trazendo outros tantos, como a negligência na educação dos filhos, tornando-se fator de isolamento, de marginalização e até mesmo de exclusão social, causado por perca de emprego, renda e culminando tal desequilíbrio com privação até mesmo ao direito de moradia, na medida em que a desorganização orçamentária pode trazer privações na assunção de compromissos como aluguel etc.
Uma das medidas adotadas pela lei para minimizar tais danosos efeitos, é justamente preservar o mínimo existencial, tanto na concessão do crédito quanto na repactuação e revisão de dívidas, já que passou a ser direito básico do consumidor a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações que gerem superendividamento. O mínimo existencial, que já era conhecido no ordenamento jurídico, agora passa a condição de protagonista, por se tratar daquele conjunto de direitos fundamentais indispensáveis ao ser humano, para que lhe seja assegurado vida digna, como saúde, alimentação, moradia e educação, e como tal, deve ser prestigiado quando da repactuação com o credor, já que a proposta de pagamento do credor deverá se ajustar a sua realidade, de forma a indispensabilidade de se preservar o mínimo existencial e em consequência o resguardo do princípio da dignidade da pessoa humana, não comprometendo sua subsistência.
Fator de grande relevância e que prestigia a segurança do consumidor antes mesmo de contrair a dívida, é trazido no artigo 54-C do CDC, onde o legislador proibiu, até mesmo de forma implícita, situações publicitárias ou não, que visem facilitar, ocultar ou dificultar a compreensão do consumidor sobre ônus e riscos da negociação a prazo, portanto, acaba com aquele tipo de publicidade trivialmente adotado pelas instituições financeiras em propagandas de empréstimos do tipo “sem consulta ao SPC”, justamente porque a lei passa a exigir avaliação e transparência da situação financeira do consumidor, elo vulnerável da relação jurídica consumerista.
Assim, embora a lei tenha trazido essa segurança prévia aos consumidores, e define no artigo 54-A, em seu § 2º, que tais dívidas englobam “quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada”, é expresso que se excluem destas as dívidas oriundas de fraude ou má-fé (art. 54-A, § 3º), contraídas pelo superendividado ativo (que se endivida, voluntária e conscientemente, muito além dos seus meios e capacidade de pagamento), ou seja, maus pagadores não poderão se valer da lei, que visa proteção ao superendividado passivo (aquele que se endivida em razão de circunstâncias alheias à sua vontade: desemprego, doença grave etc.).
A lei do superendividamento veio em boa hora, já que segundo Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), divulgada em junho/2021 pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o número de família brasileiras endividadas atingiu 69,7%.
Desta forma, foi criado o artigo 104-A do CDC, para que, caso o consumidor pessoa física esteja envolvido em situação de superendividamento, a seu requerimento, o juiz instaurará processo de revisão/repactuação de dívidas, solicitando a realização de audiência conciliatória, oportunidade em que o consumidor apresentará plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial (art. 104-A), sendo excluídas do processo de repactuação aquelas dívidas oriundas de contratos celebrados de forma dolosa, sem a intenção de efetuar o pagamento do crédito devido. Fator relevantíssimo ainda, é que a lei excluiu de forma expressa, as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, como financiamento de veículos, de financiamentos imobiliários e de crédito rural (§ 1º do art. 104-A), por serem bens que não são necessariamente exigíveis para manutenção de um mínimo existencial, uma vez que não é preciso ter casa própria ou carro para se manter dignamente.
Lado outro, não se logrando êxito na audiência conciliatória em relação a qualquer dos credores, a pedido do consumidor, o juiz instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório, citando os credores não conciliados, os quais poderão justificar as razões da negativa de aceder ou renegociar ao plano voluntário apresentado pelo superendividado (§ 2º e seguintes do art. 104-B), nomeando administrador para apresentar plano de pagamento compulsório, na forma do § 4º (O plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual previsto no art. 104-A deste Código, em, no máximo, 5 (cinco) anos, sendo que a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado de sua homologação judicial, e o restante do saldo será devido em parcelas mensais iguais e sucessivas.), sendo que ao final, o juiz avaliará sua homologação. Vale destacar ainda, que o plano de renegociação só poderá ser solicitado novamente após 2 (dois) anos da liquidação dos débitos repactuados no plano anterior (§ 5º do art. 104-A).
Deve finalmente ser ressaltado, que o plano de renegociação apresentado pelo consumidor, não implica em insolvência civil, ou seja, não será declarado que o consumidor deve mais do que o patrimônio que possui, com isso permanece plena sua capacidade de compra, e que o plano de renegociação só poderá ser solicitado novamente após 2 (dois) anos da liquidação dos débitos repactuados no plano anterior (§ 5º do art. 104-A).
Ao fim e ao cabo, a lei 14.181/21 acrescentou o parágrafo 3º ao artigo 96 do Estatuto do Idoso (lei 10.741/2003), dispondo que “não constitui crime a negativa de crédito motivada por superendividamento do idoso”, isso porque, sua situação de comprometimento deve ser avaliada antes da concessão de crédito por empréstimo.
Esperamos que essa nova legislação possa acima de tudo criar um efeito pedagógico eficiente, apto a desenvolver o consumo sustentável e consciente, para que o consumidor tenha dever ético e legal de manter-se prudente ao contrair novas dívidas, observando em tudo a boa-fé, e do outro lado, evitando oportunismos ilegais por parte dos fornecedores, que outrora mais agravavam a situação do consumidor.
Advogado, Presidente da Comissão de Direitos do Consumidor da OAB Subseção de Anápolis – triênio 2019-2021
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